sábado, 30 de setembro de 2017

Canto de liberdade
(aos pés de cruz nenhuma)













Sendo um estilo de samba onde existe uma questão (refrão) e uma resposta (coro), o Partido Alto nos remete a uma convocação para que cantemos juntos e, por consequência, vivamos juntos.

A variação permanente no desenrolar da letra contrasta com o tom monocórdio da melodia, fazendo-nos lembrar até dos mantras indianos e outros ritos musicais onde a repetição eleva os espíritos a patamares superiores de consciência.

O refrão é repetido com garra e insistência (terá sido mera coincidência a aparição do “eu” também aqui?!):

Fique tranquila morena que a vida é pequena
EU VOU VOLTAR
Nunca vou esquecer sua pele macia e serena
EU VOU VOLTAR
Você é a lira que delira no brilho da cor da açucena
EU VOU VOLTAR
Você é o vento que, quando assobia, parece que acena
EU VOU VOLTAR
[Trecho de MAR DE AMOR,
João de Abreu]



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quinta-feira, 28 de setembro de 2017

TERCEIRA PARTE

Uma questão de coragem













Quem sou eu?! Difícil responder a esta pergunta. Tudo e todos que existem, existem porque estão em movimento e isso não é novidade alguma desde os antigos gregos que começaram a distribuir entre eles elementos não estáticos.

Entre os africanos é notório também o saber olhar para o céu, saber decifrá-lo não através da razão, como nós ocidentais, mas com uma perspectiva mitológica enraizada na terra, no céu, na água e no ar que transcendia a questão meramente humana de “ser ou não ser”.

Esse olhar certamente permeou étnica e culturalmente o Partido Alto na forma de samba que mais se aproxima da origem do batuque angolano, do Congo e outras regiões vizinhas.

Modernamente, o estilo Partido Alto com base em versos realmente improvisados vem caindo em desuso, não só pela diminuição de rodas de samba em sua concepção original, como pela facilidade atual de se repetir versos pré-elaborados, gravados e difundidos pela tecnologia da comunicação deste século XXI.

A questão do “eu” não é meramente filosófica, do ponto de vista de alguém olhar para si mesmo e tentar extrair de forma abstrata a essência do que existe no mundo a partir de uma ótica pessoal.

Candeia, no documentário PARTIDO ALTO, de Leo Hirzmann, diz que este é a expressão mais autêntica do samba. Aí, ele deixa clara a categoria do “eu” que se mostra 1) evidente; 2) de forma velada; ou 3) desmembrando-se em “meu”.


EU SOU UM HERÓI    (João de Abreu)


Tô sempre rindo daquilo que dói
No fundo eu acho que eu sou um herói

Não consigo aturar nem mais um patrão
Que quer só mostrar que é o dono do mundo
Ou eu fico duro, ou viro ladrão
Ou só pra rimar eu me chamo Raimundo

Tô sempre rindo daquilo que dói
No fundo eu acho que eu sou um herói

Os vizinhos já estão a pensar mal de mim
Fofocam que eu sou mafioso ou gay
Eu não penso que a grana vem do capim
Eu faço magia, não sei de onde vem

Tô sempre rindo daquilo que dói
No fundo eu acho que eu sou um herói

Vagabundo não é mais aquele ocioso
Pode ser um distinto bem desempregado
Quem sabe a gente acostuma com osso
Onde a vida murmura um som desafinado

Tô sempre rindo daquilo que dói
No fundo eu acho que eu sou um herói

Na rua as pessoas só pisam em buracos
Achando que o mundo não vale um vintém
Fazendo castelos por sobre barracos
E dizendo que a crise não vai muito bem.

Tô sempre rindo daquilo que dói
No fundo eu acho que eu sou um herói

O meu pai, no passado, não cansou de pedir
Para eu ser um médico ou então militar
Mas não conseguiu me fazer redimir
Pois ele era pobre e não pode pagar

Tô sempre rindo daquilo que dói
No fundo eu acho que eu sou um herói

Eu só faço arte, não é malandragem
Não é por orgia, pilhéria ou um bem
Canto que a vida anda de estiagem
Poeta, herói, eu sou João Ninguém

Tô sempre rindo daquilo que dói
No fundo eu acho que eu sou um herói

Cada dia que eu pego uma condução
Eu pago um preço que sempre é demais
Eu não ganho nada fazendo canção
Sendo assim, eu só pulo pela porta de trás

Tô sempre rindo daquilo que dói
No fundo eu acho que eu sou um herói

Não arranjo emprego em lugar nenhum
Eu vou no Maraca sem Zico ou Mané
Chego prum amigo: “Me empresta mais um”...
E assim vai a vida como Deus quiser.

(CONTINUA)


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segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Segunda Parte - Candeia












Candeia foi um dos nossos melhores versejadores... versificadores... ou, como melhor nos cabe aqui, um dos nossos melhores partideiros.

Muitos críticos não conseguem estabelecer um paralelo exato entre o improviso do Partido Alto e o improviso da Literatura de Cordel. Azar dos críticos, porque ambos se revestem de valores estéticos populares inalcançáveis por estes críticos, geralmente parte da elite social, política e econômica do país, que não passam de importadores de comportamentos...

Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra; e não cabe aqui discutir isso (basta pesquisar "googlezando", como diria um amigo meu... Até porque, um país tão rico etcnoculturalmente cada um puxa a brasa para a sua sardinha...


Testamento de partideiro

Ao meu amor deixo o meu sentimento
Na paz do Senhor
E para os meus filhos deixo o bom exemplo
Na paz do Senhor
Deixo como herança a força de vontade
Na paz do Senhor
Quem semeia amor deixa sempre saudade
Na paz do Senhor
Aos meus amigos deixo o meu pandeiro
Na paz do Senhor
Honrei os meus pais e amei meus irmãos
Na paz do Senhor
Mas aos fariseus não deixarei dinheiro
Na paz do Senhor
Pros falsos amigos deixo o meu perdão
Na paz do Senhor

Porque o sambista não precisa ser membro da academia
Ser natural com sua poesia e o povo lhe faz imortal
Porque o sambista não precisa ser membro da academia
Ser natural com sua poesia e o povo lhe faz imortal

Mas se houver tristeza, que seja bonita
Na paz do Senhor
De tristeza feia o poeta não gosta
Na paz do Senhor
E um surdo marcando o choro de cuíca, na paz do Senhor
Viola pergunta, mas não tem resposta, na paz do Senhor
Quem rezar por mim que o faça sambando, na paz do Senhor
Porque um bom samba é forma de oração, na paz do Senhor
Um bom partideiro só chora versando, na paz do Senhor
Tomando com amor batida de limão, na paz do Senhor

E como levei minha vida cantando, na paz do Senhor
Eu deixo o meu canto pra população, na paz do Senhor
E como eu levei minha vida cantando, na paz do Senhor
Eu deixo o meu canto pra população, na paz do Senhor


Fica nítida a frequência dos pronomes possessivos “meu”... “minha”... é o “eu” egóico, individual e possivelmente consciente de sua temporalidade aqui na Terra. O poeta Candeia transfere com humildade, no refrão, para Deus, como sendo Eterno, Maior e Superior às fraquezas humanas.

Se estamos escrevendo certo ou errado, isto é algo muito relativo, porque existem diversos contextos onde o acerto ou o erro vai flutuar em vários sentidos.

Podemos nos arriscar, inclusive, a reconhecer que nos encontramos, agora, entre uma gramática oficial, aquela que nos oprime com seus medalhões literários e linguísticos, e uma gramática flutuante, em permanente mudança, tal como os versos imprevistos do Partido Alto.

Nesse sentido, nos encontramos diante de um fenômeno de resistência cultural: versos livres... mais do que livres: imprevistos.
“Licença poética” não é necessária diante de mentes brilhantes como a de nossos mestres do samba, que caminham junto ao povo, longe das catedrais, das academias e das universidades.

A seguir, mas um espaço aberto para o pronome “eu”...

(continua amanhã)




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quinta-feira, 21 de setembro de 2017

PARTIDO ALTO

ENTRE A REPETIÇÃO INTENCIONAL (rotina - refrão)
E O IMPROVISO INESPERADO (liberdade - versificação)

João de Abreu Borges












                        PRIMEIRA PARTE

A roda de samba - A volta da vida - A vida de bamba

O grande poeta modernista (terceira geração) brasileiro Dante Milano escreveu por volta da década de 1930: “Eu canto a vida / A verdadeira vida / Não a que é vivida / Mas a que está perdida / A que é apenas sonhada”.

Começamos nossa reflexão, então, questionando qual a fronteira (se é que existe) entre sonho e realidade, e fizemos uso acima dos versos do genial poeta conterrâneo nosso.

Se considerarmos que ambos (sonho/realidade) são fugazes, então não pode haver fronteira nenhuma, do contrário essa fugacidade não se transformaria em transitoriedade permanente, tais como são os versos improvisados do Partido Alto, estilo a que nos propomos a abraçar aqui em nosso texto.

Quando personagens, como Candeia, Geraldo Babão ou qualquer outro gênio do gênero, se reúnem e pegam seus instrumentos, destes o único que não sabe exatamente o que vai expressar é a voz, porque os versos aguardam em algum lugar da alma do sambista sua vez de entrar em cena.

As letras se metamorfoseiam... as sílabas transformam-se em palavras... e as palavras vão tomando conta do ar quase que à revelia de quem canta, já que formarão frases semiautônomas na língua do improvisador.

Se alguém chegasse para o Padeirinho, por exemplo, e perguntasse que versos usaria ou que rimas distribuiria pelo canto, ele só saberia responder depois que o Partido Alto começasse.

(continua)


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terça-feira, 22 de agosto de 2017

Davi e Golias glamourosos












Diz o menor:
– Calma aí, vamos conversar! Que tal se unirmos a minha astúcia à sua tranquilidade, hein grandalhão?!
O grandalhão:
– Mas você viu a cor das peças íntimas da minha mulher!"
Ao que o baixinho respondeu:
– Mas que culpa tenho eu de ser tão baixinho, além do que sou estrábico e daltônico, daí...
O grandalhão:
– Tá bom! Mas está vendo a minha pata da direita erguendo-se?!
– Sim, mas por favor, não me agrida!

– Não, eu vou é te fazer um carinho em nome do direito de todos serem diferentes, apesar de semelhantes em suas fraquezas!




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quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Elvis Presley, um conto de fadas?!
(Não é culpa da formiga nem da cigarra...)



Os contadores de histórias (todo poeta, no fundo, é um, e eu que o diga) devem viver encafifados até hoje, não com a morte inexplicável (do ponto de vista dos corações que começaram a dançar a música negra do Mississipi na pele de um branco extraordinário, visionário e futurista.).

Por que me refiro aos contadores de histórias?! Porque entre a formiga trabalhadora e a cigarra cantadora, ninguém nunca admitiu a possibilidade de haver um interregno, como diriam os mais intelectuais.

A Formiga um dia morreria de tanto trabalhar... A Cigarra, de tanto cantar...

Mas ele, Elvis, desfez esse engano de um conto de fadas e, assim, tornou humano este mesmo conto. Por quê?!

Por que rebolou?! Por que era branco de voz negra?! Por que nasceu no Mississipi?! Por que era lindo, do ponto de vista das meninas desta época e como modelo para os jovens, como eu, que tinham sonhos e um desses maiores sonhos era ser um “elvis Presley”?!

A humanidade precisa de Elvis’s, Einsteins, Galileus... Caras que sobrevoaram o futuro e trouxeram uma imagem nova do Universo, seja social, político, econômico, artístico, etc e tal.

Quanto à formiga e à cigarra, ambos seguiram seus destinos, mas Elvis não seguiu... abriu novos destinos para toda uma geração pós-guerra, que aprendeu a duvidar de limites, de fronteiras, conceitos “pré”...

E isso tem um preço e um valor. O preço é a própria extinção (cigarra explodindo de canto OU DE TANTO CANTAR) e a perpetuidade da espécie. O valor... bem, o valor é inconsciente, inconcebível, inimaginável pelo próprio condutor desta ideia...

Só quem sobrevive ao tempo não é o indivíduo, é o grupo a que ele pertence. E este grupo insere-se no “Grande Tempo”, teoria de Mikhail Baktin, por exemplo, que transfere para o mundo histórico temporalmente o que qualquer cidadão como Elvis, forte demais para si próprio, um sentimento coletivo (Jung?!) insustentável para uma época.

Adeus, querido super-herói de minha adolescência! Não quero (até mesmo porque não conseguiria...) trabalhar tanto e em vão como as formigas, nem cantar o canto da explosão das cigarras.

Meu pulmão se enche. O coração inflama. A mente sempre reclama... mas não vou deixar que só a História te ame. Eu sou um cidadão e, como tal, também te amo e, por muito menos do que você fez, morrerei também...

Morreremos...



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terça-feira, 15 de agosto de 2017

Artistas sem mídia e meio dia

"Pincelada Tridimensional", de Marcelo Nitsche (2000)










Olha só!
Esses caras não sabem o que estão fazendo. Se soubessem, no mínimo estariam envergonhados, mesmo sem devolver tudo que tiraram de nós.

Envergonhados?! Rsss... Se tivessem um pouco de humanidade, nunca se sentiriam assim, né verdade?!

Somos artistas do povo, cheios de problemas, cheios de contas a pagar, cheios de não receber nada, por sermos artistas criativos e trabalhadores honestos.

Cheios de esquinas, cheios de promessas mal resolvidas e tricotagem que nunca chegam ao fim. Cheios de aventuras forçosas e utopias sem empurrões.

Quem somos nós?! Onde estamos?!

Estou lendo Mario Vargas Llosa (Sabres e Utopias)... Deixei um pouco de lado Herman Hesse (A arte dos ociosos)...

E você, pobre e desorientado leitor que nem eu, diria: o que tem a ver um livro com o outro? Não sei. Estão rolando aqui pelo meu quarto. De vez em quando pousando em minhas mãos.

Já disse uma vez o meu amigo e filósofo e minimalista e mímico Jiddu Saldanha: “Serei feliz, nem que seja por vingança!”


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